Há quase cem dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subia a rampa do Palácio do Planalto, pela terceira vez como eleito, em um 1º de janeiro. Com um movimento simbólico, a cerimônia mais recente veio ao lado de oito representantes da sociedade, sem a tradicional troca de faixa por parte do antecessor, Jair Bolsonaro, que iniciava a temporada de 89 dias fora do país. Todos os discursos das horas ao longo da posse sinalizavam a forma como o petista conduziria o início do novo mandato – colocando-se como um opositor ao último governo, em resgate às ações que adotou nos outros períodos em que esteve como presidente e em defesa do projeto para colocar fim ao teto de gastos, atual regra fiscal brasileira.
Neste 10 de abril, Lula chega em um Brasil diferente, mas com projetos do Executivo que lembram os mandatos após as vitórias nas eleições de 2002 e 2006. O presidente retomou os programas sociais Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida e Mais Médicos – os três maiores de seus governos anteriores. Lula também fez movimentos para reinserir o Brasil no cenário de política exterior com viagens previstas quase a cada mês, e, agora, quer focar no avanço de pautas econômicas, como a reforma tributária e a nova proposta de regra de gastos, que será apresentada ao Congresso nesta semana – ambas dependem do apoio de deputados e senadores, ainda não evidente no governo petista.
Se por um lado Lula precisa correr com mudanças para aumentar a geração de empregos – que marcou os 8,6% no trimestre encerrado em fevereiro – e para diminuir os 13,75% da taxa básica de juros, por outro, ele chega aos 100 dias atendendo ao que se propôs inicialmente, segundo avaliam especialistas consultados pelo SBT News. Na opinião de cientistas políticos, a retomada de programas já conhecidos não é negativa. E o real desempenho do presidente será medido com a evolução das novas propostas à área econômica.
“De maneira geral, o governo tem se desenrolado dentro das expectativas que se tinha quando a eleição do Lula foi confirmada. É um governo que provavelmente vai encontrar dificuldades em função do perfil do Congresso, que tem um núcleo bastante expressivo oposicionista, e que faz com que o presidente tenha que usar de uma certa prudência política, de um certo cálculo na condução de suas propostas”, analisa o cientista político João Trajano Sento-Sé, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Apesar dos compromissos firmados com as reformas, há pouco mais de um mês o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que o governo Lula não tinha uma base no Congresso para aprovar medidas. “Hoje o governo ainda não tem uma base consistente, nem na Câmara nem no Senado, para enfrentar matérias de maioria simples, quanto mais matérias de quórum constitucional”, disse, no último 6 de março.
O teste para saber se houve evolução da base nesse meio tempo será feito em breve, já que os próximos planos dependem de uma boa relação com o Congresso, conforme aponta o professor Sérgio Praça, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Na tramitação do novo arcabouço fiscal que deve ser apresentado, o governo precisa que seja aprovado rapidamente. Arthur Lira já disse que vai dar prioridade. Nunca se sabe, mas acho que têm incentivos. Tem a LDO [Lei das Diretrizes Orçamentárias] que vai passar pela Comissão Mista e vai revelar as expectativas do governo sobre o arcabouço. E tem a reforma tributária, que vai ser dividida em duas propostas e depende bastante do Congresso, e o governo sabe disso”, afirma o cientista político.
Mesmo considerando que o governo iniciou uma boa articulação no Congresso, Praça destaca que a reforma no sistema de tributos pode esbarrar em desafios para avançar, pela possibilidade de afetar negativamente interesses de grupos econômicos. “Não é nada fácil. Acho que há motivos para o governo ser otimista em relação à tramitação, mas depende muito do Congresso”, destaca.
Retomada de projetos
A maioria dos feitos ao longo dos 100 dias foi voltada para o retorno dos projetos considerados carros-chefes nas antigas gestões petistas. Com uma Esplanada reformulada, em 37 ministérios, o presidente definiu R$ 600 como novo valor para o pagamento do benefício social que voltou a se chamar Bolsa Família. Em fevereiro houve o relançamento do Minha Casa, Minha Vida. E, posteriormente, outras retomadas de políticas, como Mais Médicos, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) e o Programa de Aquisição de Alimentos.
João Trajano Sento-Sé destaca que o reembalar antigos projetos ganha espaço pelas mudanças, ou paralisações, pelas quais as propostas passaram ao longo do governo de Jair Bolsonaro. “Não deveriam ser retomados como mais do mesmo. Mais Médicos, Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida. Todos esses projetos foram interrompidos e eram projetos que já haviam demonstrado sua viabilidade, eficácia e valor social”, diz.
As ações serem válidas como propostas no novo governo também são reforçadas por Sérgio Praça. “Tem muita gente criticando, mas acho positivo. Se políticas públicas deram certo, porque não voltar com elas? Claro que pensando em aspectos que deram certo e errado, mas não acho isso, em si, ruim”, pontua.
Críticas à gestão
Uma falha do governo e do Legislativo, apontada pelo professor da FGV, seria a falta de punição a congressistas que incentivaram os atos de 8 de janeiro. No dia, protestos com pautas antidemocráticas e que questionavam a vitória de Lula nas eleições culminaram na invasão aos Três Poderes. No entendimento do cientista político, o governo deveria ter atuado para cassar o mandato dos parlamentares “Não acho que necessariamente deveria ser liderado pelo governo Lula, mas é uma marca negativa e que vai sentir”, considera.
Já Trajano Sento-Sé afirma que Lula deveria ponderar em críticas feitas diretamente a Bolsonaro, passando a missão de comparações ao antigo governo a aliados e ministros. “Pode investir de uma forma mais inteligente nas suas estratégias de comunicação. Acho que dá para olhar para isso com mais atenção, e acho que o presidente deveria terceirizar as críticas ao legado bolsonarista”, comenta. “Pode passar a impressão de que ele está preso, está de alguma forma vinculado ao seu antecessor”, completa.
No campo da comunicação, Praça também destaca que a condução de ministros junto ao Legislativo poderia ser melhor – apesar de ainda estar em ponto inicial. “Rui Costa [da Casa Civil] e Alexandre Padilha [das Relações Exteriores] parecem ter atribuições muito semelhantes, e têm criado alguns ruídos”, diz.
Entre erros e acertos, a expectativa para o governo se canaliza para após os primeiros dias. A trajetória do terceiro mandato de Lula será definida em breve, com o avanço ou recuo de apoio às suas propostas. “Os 100 dias, claro, são importantes, mas acho que os próximos meses, até o fim de junho, vão ser cruciais para o sucesso do governo. Inclusive para implementar as ideias velhas de políticas públicas, como Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família e Mais Médicos. São os próximos meses que vão definir”.
Os 100 dias de Lula
1º de janeiro – Lula toma posse em Brasília, sem a presença de Bolsonaro. Em cerimônia no Planalto, o presidente assina 52 decretos e 4 medidas provisórias – entre elas a que reordenou a Esplanada, criando 37 ministérios. Em meio as decisões do dia, Lula retomou o Fundo Amazônia, pôs fim a Funasa, e revogou decretos de sigilos de Bolsonaro, incentivo ao garimpo ilegal e os de facilitação para adquirir armas de fogo – também estabeleceu os registros de CACs.
8 de janeiro – protestos contra o resultado das eleições se intensificaram e o avanço dos atos antidemocráticos levou a invasão e depredação dos Três Poderes – Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal. 1437 pessoas foram presas. E a estimativa da Advocacia-Geral da União é de um prejuízo de R$ 20,7 milhões.
9 de janeiro – um dia após a invasão, Lula se reuniu com governadores e representantes dos Poderes no Palácio do Planalto. Após o encontro, o presidente fez uma caminhada com as autoridades até o STF – o trajeto teve intenção de mostrar os estragos dos atos do dia anterior.
12 de janeiro – o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou um pacote de medidas econômicas para reduzir o rombo nas contas públicas do ano, com previsão de R$ 242 bilhões. Entre as medidas estavam a volta de cobrança parcial de impostos sobre combustíveis.
18 de janeiro – após encontro com centrais sindicais, houve o anúncio do governo de um aumento real do salário mínimo. O valor passa de R$ 1.212 a R$ 1.320, indo além da inflação. A promessa segue para ser efetivada em 1º de maio.
20 de janeiro – a denúncia da crise em saúde yanomami torna-se pública, com a divulgação de que 570 crianças morreram por desnutrição. Uma comitiva do governo com o presidente Lula viaja a Roraima no dia seguinte e é criado um grupo de trabalho para apoio aos indígenas.
21 de janeiro – no mesmo dia em que viajou a Roraima, Lula demitiu o então comandante do Exército, Júlio César Arruda, e nomeou o também general Tomás Ribeiro Paiva para o lugar. O movimento veio em meio a uma série de movimentações de militares que atuavam no governo. Ao menos 80 foram demitidos.
23 de janeiro – o presidente fez a primeira viagem internacional, e teve como escolha a Argentina. Lula se encontrou com o presidente Alberto Fernández em mais de um dia. O ministro Haddad, que acompanhou a comitiva, sinalizou a intenção em se criar uma moeda comum entre os dois países. Após a viagem, Lula também foi ao Uruguai, onde defendeu acordos comuns ao Mercosul.
30 de janeiro – Lula se encontrou, no Brasil, com o chanceler alemão, Olaf Sholz. Entre os temas discutidos estiveram a guerra entre Ucrânia e Rússia. Scholz anunciou recursos ao Brasil e o presidente se negou a vender armas para a Alemanha – que está do lado da Ucrânia na guerra.
1º de fevereiro – com apoio do governo, os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) foram reeleitos no Congresso.
10 de fevereiro – Lula viaja aos Estados Unidos para uma reunião com o presidente do país, Joe Biden. Ambos discutem democracia – em comparação aos atos de 8 de janeiro com a invasão ao Capitólio – e negociações para contribuição dos EUA ao Fundo Amazônia se intensificam.
14 de fevereiro – o governo relança o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida – em substituição ao Casa Verde Amarela. Há destaque para incentivo de participação ao público com renda de até R$ 2,6 mil.
18 de fevereiro – chuvas no litoral norte de São Paulo aproximam o governo federal ao do estado. Lula estava na Bahia e viajou para a cidade de São Sebastião, a mais afetada pela tragédia. No período se reuniu e anunciou medidas com Tarcísio de Freitas (Republicanos). Ao menos 65 pessoas morreram pelos deslizamentos.
28 de fevereiro – o governo retoma parte dos impostos sobre combustíveis. Com justificativa de maior arrecadação, Haddad definiu o aumento da gasolina em R$ 0,47 e o etanol em R$ 0,02 – o movimento coincidiu com uma redução nos preços da Petrobras.
1º de março – Lula lança o novo Bolsa Família, com o pagamento mínimo de R$ 600 para as famílias beneficiárias, e com acréscimo de R$ 150 por criança de até 6 anos – além do valor para adolescentes é de R$ 50.
17 de março – o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, leva a proposta do novo arcabouço – que muda as regras de gastos – para Lula.
20 de março – o governo relança o programa Mais Médicos, dando prioridade para profissionais brasileiros com descontos para financiamento estudantil.
22 de março – reunião do Conselho Monetário, Copom, mantém em R$ 13,75% a taxa de juros no país. A decisão foi alvo de críticas da parte do governo.
23 de março – em uma entrevista ao portal Brasil 247, Lula critica o senador Sergio Moro (União-PR), pelo período em que foi juiz na operação Lava Jato e condenou o petista. O presidente disse que enquanto esteve preso, traçou planos contra o político, que chegou a ser ministro no governo Bolsonaro. Um dia depois, a Polícia Federal fez operação contra a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), e constatou que o grupo planejava atentar contra Moro. A repercussão foi negativa e, em meio aos desdobramentos, o presidente chegou a dizer que não tinha provas, mas que acreditava ser um plano do ex-juiz.
25 de março – após cumprir uma intensa agenda de compromissos em diferentes estados, como Pernambuco e Rio de Janeiro, Lula é diagnosticado com uma pneumonia leve e uma gripe, o que faz com que cancele os planos de viagem à China, originalmente prevista para 26 de março. A nova expectativa é visitar o principal parceiro comercial brasileiro em abril.
30 de março – o ex-presidente Jair Bolsonaro retorna ao Brasil, após 89 dias nos Estados Unidos. No mesmo dia, o governo apresenta a nova proposta de arcabouço fiscal.
Fonte: Sbt News